foto: Derlei de Luca observa do reencontro com o homem que a torturou, Homero César Machado, coronel reformado do Exército - Carlos Kilian/Agência AL
Na semana em que a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou o relatório final do trabalho de 2 anos e 7 meses, a catarinense Derlei Catarina de Luca, ex-presa política do Regime Militar, ainda sente os efeitos do encontro com um dos seus algozes, o coronel reformado do Exército Brasileiro, Homero César Machado, ocorrido no dia do depoimento de ambos na CNV, em São Paulo, em 1º de setembro.
Depois de 44 anos, o militar reconheceu Derlei, negou as acusações de tortura, mas fez um gesto que surpreendeu: tocou nela, após uma breve troca de olhares, palavras e sorrisos.
“Eu tive uma assombração durante 44 anos que não era assombração. Ele é uma pessoa normal. Mas isso me assombra ainda mais. Como é que um ser humano pode fazer uma maldade extrema e depois ter uma vida aparentemente normal. Mas ele deve se lembrar e também ter remorso. Eu me sinto aliviada. Mas me sinto assustada também”, desabafou Derlei ao analisar pela primeira fez as fotos do encontro com o coronel Homero César Machado.
Ele é acusado de comandar sessões de tortura física contra ela durante sua prisão na Operação Bandeirante (Oban) em São Paulo, entre novembro de 1969 e março de 1970, quando sentiu na pele os choques elétricos da “cadeira do dragão” e os efeitos desoladores do pau de arara.
No dia seguinte ao encontro, outra surpresa marcaria a vida da catarinense servidora da Assembleia Legislativa, membro da Comissão Estadual da Verdade Paulo Stuart Wright e coordenadora do Coletivo Catarinense Memória, Verdade e Justiça.
“Eu só vi que ele tocou em mim quando abri o jornal”, disse incrédula à reportagem da Agência AL. “Lendo as fotografias dá de ver que o alívio maior foi para ele. Dá para ver nas fotos”, acredita Derlei.
Derlei afirma que após o encontro não teve mais pesadelos e se sente mais leve. “Foi um alívio”. O fato de o coronel Homero ter feito o depoimento na CNV foi elogiado por ela. “O fato mais positivo que eu acho nisso tudo é ele ter ido depor. Foi de cara limpa. Foi uma atitude positiva. O mais importante para mim é garantir a memória, garantir a história”.
Coronel não fala sobre o encontro
A última troca de olhares do coronel Homero César Machado e Derlei Catarina de Luca ocorreu nas dependências do Escritório Regional da Presidência da República, no centro de São Paulo, ao fim dos depoimentos na Comissão Nacional da Verdade.
No momento em que Derlei afirmava à imprensa que não sentia raiva do coronel e que “todo mundo tem seu papel na vida”, ele confirmou as palavras dela dizendo: “todo mundo tem”, quando tocou na ex-presa política.
O militar reformado, de 74 anos, prestou um depoimento sem detalhes sobre sua participação na Oban, negou as torturas, e, por várias vezes, usou da ironia e do sarcasmo para se dirigir a vários ex-presos políticos presentes na audiência.
Disse que sua consciência está tranquila e que a CNV deveria cobrar das Forças Armadas o pedido de desculpas, e não dele. “Nós éramos agentes e delegados da instituição. Ninguém bradava: ‘vamos perseguir os comunistas’”, declarou.
Nos dias 8, 9 e 10 de dezembro, a reportagem da Agência AL esteve em São Paulo, para ouvir o coronel Homero César Machado sobre o encontro com a catarinense. Ele presta serviços voluntários diariamente no Clube Círculo Militar, no bairro Paraíso, segundo sua secretária.
Contatos por e-mail e por telefone também não foram retornados. No prédio em que tem apartamento, também no bairro Paraíso, a portaria informou que o imóvel foi alugado recentemente. Ainda, foi informado à reportagem que o coronel estaria realizando consultas médicas e exames clínicos, e por isso não estava no clube militar.
“Podem me procurar no [Clube] Círculo Militar. Estou todo dia por lá. É só me procurar”, disse o coronel à Agência AL no dia do seu depoimento na CNV, ao final da entrevista em que declarou: “de jeito nenhum [o Exército deve desculpas]. Eles eram terroristas também. Houve excessos dos dois lados. Ninguém era santo ali. Agora eles posaram de lutadores pela liberdade e democracia. Queriam implantar o comunismo aqui dentro. Aquilo era Guerra Fria. Todo mundo ali tinha culpa. Terrorismo e tortura eram fenômenos interligados. Um alimentava o outro. Os dois eram condenados, mas eram tolerados”.
Círculo de tortura
Por coincidência ou ironia do destino, o prédio onde está o apartamento do coronel fica próximo ao local onde funcionou a Operação Bandeirante, pela qual Derlei foi torturada até os limites da vida. Hoje, as instalações da antiga operação do Exército servem de depósito e seu acesso é rigidamente controlado.
Da mesma forma como o acesso às antigas celas de interrogatório do DOI-Codi, onde hoje está instalada a 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Segundo a Chefia de Investigação, é preciso autorização direta do secretário de Segurança Pública para ter acesso ao local. A Agência AL visitou os locais que se tornaram o calvário da catarinense. Veja na arte a indicação dos pontos.
Há poucos quilômetros dali está o largo Dona Ana Rosa, onde Derlei morava e militava no final da década de 60, durante os anos de chumbo que marcaram a história brasileira.
Presa num domingo à tarde, quando estava numa lanchonete com um companheiro de luta, ela não sabe identificar com exatidão onde foi surpreendida pela polícia. “Era uma lanchonete perto da minha casa. Marquei ali por isso. Foi na [rua] Vergueiro”.
Perto do local indicado por Derlei, está aberta há mais de cinco décadas uma lanchonete. “Tinha um monte de estudantes cabeludos por aqui”, disse o dono do local. “Mataram dois ali na esquina”, indicou o comerciante, afirmando não se lembrar da prisão da então estudante Derlei Catarina de Luca. “Vi muita coisa aqui”.
› FONTE: ALESC