Nesses dias nebulosos de quarentena regada a mais absurda crise política, eu me refugiei na literatura.
Aproveitei para continuar a leitura sobre o chamado período da Caça às Bruxas, tempo entre 1580 e 1750 quando mais de 200 mil mulheres foram queimadas vivas em fogueiras (na Europa e nas Américas) e que ficou conhecido como o maior feminicídio da história da humanidade e que veio na esteira da Santa Inquisição. E nessa minha busca por entender o significado histórico de bruxa, descubro que eram mulheres que difundiam o poder feminino da intuição, da sensibilidade, do sexto sentido, da amorosidade na lida com a vida e os fatos. E que tinham o conhecimento da medicina natural das ervas, eram parteiras e benzedeiras e ligadas à uma antiga religiosidade de ordem matriarcal pois adoravam a Deusa Mãe, a natureza. Muitos desses relatos estão traduzidos de modo poético e hoje compõem um acervo de lendas incríveis, que pelo avesso, narraram a dor do estigma, da perseguição e a sobrevivência ao terror.
Leio sobre a Caça às Bruxas e me volto para o hoje das redes sociais e telejornais e penso que tudo parece se repetir no contínuo conturbado movimento da história. E busco novamente o refúgio na literatura de ficção. Absoluta sobrevivência minha.
Foi então que me deparei com a leitura de duas pérolas que encontrei dia desses: Brumas da Ilha e Filhas da Lua de autoria da maravilhosa Bianca Furtado.
Quem me conhece sabe que há muito tenho lido a obra do artista Franklin Cascaes que recuperou as narrativas de bruxas na voz dos nossos antepassados, nativos açorianos da Ilha de Santa Catarina e litoral vizinho. Eis que, buscando algo para saciar meu desejo pelas palavras, encontro nas estantes da Letraria do Rio Tavares a obra de Bianca Furtado quando a gerente Tatiana Dassi (ótima conhecedora dos títulos disponíveis) me mostrava os livros dizendo ser uma proposta de narração do “mito original” das Bruxas da Ilha. Como fiel leitora de Cascaes reagi imediatamente, defendendo Cascaes. Mas a consciência bateu, levei os livros e os devorei. Não conseguia largá-los, um após o outro, parecia magia, era o feitiço lançado por Bianca.
Em síntese, Bianca Furtado nos traz uma leitura do fenômeno cultural da bruxaria, narrado sob o ponto de vista de uma mulher. Conta a história de um coletivo feminino no século 18, que pertencia a uma antiga religião de origem celta (anterior ao Cristianismo) que se manifestava no Arquipélago dos Açores. A sua pesquisa mostrou o quanto a cultura açoriana esteve influenciada pela civilização celta, e isso explica muita coisa. Céltica é, por exemplo, uma variação conceitual para demarcar uma cultura alentejana particular. E ela narra, com tamanha precisão e graça a vida no Arquipélago, em especial nas Ilhas das Flores e do Corvo que vc se promete que, assim que a pandemia passar, vai conhecê-las. E Bianca me contou que nunca esteve naquelas Ilhas. O que se lê é uma pura manifestação da visão (um dom que as bruxas têm).
Na narrativa, essas mulheres – acusadas de bruxaria - só encontram um modo de escapar da perseguição: se juntarem às levas de colonizadores que deixam as Ilhas do Arquipélago dos Açores em direção ao sul do Brasil, para a Ilha de Santa Catarina. E aí vivem todo o percurso da adaptação na nossa Ilha da Magia, vivendo o seu ambiente, suas praias, seus costões, sua atmosfera com a introdução da nova cultura açoriana no local, em relação com os indígenas, com os negros na montagem dos engenhos de fabricar farinha de mandioca e melado de cana e cachaça, e tudo de melhor que pode haver na manifestação da nossa mitologia, vivida na pele das personagens a quem Bianca Furtado furtado deu voz.
(Foto Crédito da autora)
Em tempo, como sou professora e pesquisadora, não me contive. Voltei na livraria e comprei Brumas de Avalon de Marion Zimmer Bradley (de novo porque os li aos meus 16 anos eu já tinha doado os exemplares). Fiquei curiosa, afinal, havia uma proposta de citação no próprio título. E agora que já acabei de conferir os 4 volumes de Avalon, eu posso garantir! Brumas da Ilha e Filhas da Lua de Bianca Furtado são muito mais emocionantes. Falam com todo respeito de uma antiga religião que foi silenciada pelo Cristianismo (semelhante à citada por Bradley) mas, em uma narrativa original e com tempero local, densa, com personagens cheios de ambiguidade, ritmo próprio e propriedade única por trazer à tona, do fundo do baú, a memória ancestral do nosso lugar em uma rica polifonia da Ilha de Santa Catarina. E é uma narrativa universal. Bianca já foi convidada para ir aos Açores. E com este trabalho certamente nos apresenta no melhor estilo, para o mundo.
É uma delícia. Uma maravilha. Exemplar. Parabéns Bianca Furtado querida, eu já integro o teu fã clube! E obrigada por nos ajudar a engrossar o caldo de histórias sobre o nosso lugar.
Não percam!!! Aproveitem porque Bianca Furtado criativa que é, abriu a sua lojinha virtual para que todos possam encomendar os seus e se deliciar com essas narrativas incríveis sobre as bruxas da Ilha de Santa Catarina.
Bebel Orofino
Pesquisadora da Cultura Popular da Ilha
http://www.biancafurtado.com/2020/04/minha-loja-virtual.html?m=1
› FONTE: Floripa News (www.floripanews.com.br)