HINO NACIONAL BRASILEIRO[1]
Música de Francisco Manuel da Silva (1795-1865)
Letra de Joaquim Osório Duque Estrada (1870-1927)
Nosso hino é quase desconhecido da grande maioria dos brasileiros. Por isso, no meu livro Aspectos Práticos de Redação e Revisão, no assunto dificuldades da língua portuguesa, resolvi incluir um serviço à Pátria: interpretar a poesia do hino, trocá-la em miúdos para que mais compatriotas nossos o conheçam realmente e saibam o que significam aquelas palavras esquisitas que nunca professora alguma nos ensinou na escola. No colégio São José, nas décadas de 1950 e 1960 um dos mais rigorosos do estado, cheguei a fazer análise sintática da primeira estrofe e estudei o hino em latim. Nunca consegui decorar além de Audiverunt Ipirangae ripae placidae, o verso inicial. Mas as Irmãs da Imaculada Conceição, nossas professoras, bem que tentaram. Sinceridade? De espírito sumamente prático, nunca me convenci da utilidade de saber o nosso hino em latim. A Ave Maria em latim e em francês aprendi e sei até hoje. Porque sempre gostei de línguas e estudava todas com prazer. Mas latim não é para amadores. E também não é para falar. Gosto do latim por causa da etimologia: há muitas palavras de origem latina nas 5 línguas que aprendi e nas quais consigo comunicar-me. Como veem, eu não era muito rebelde. Só um pouquinho...
Um fato que poderia haver-me traumatizado com esse hino: já com 16 ou 17 anos, no curso normal, fui flagrada pela Irmã Maria da Glória enrolando na cantoria do hino, em aula de música, porque não sabia a letra de cor. Mais ou menos como fazem nossos jogadores de futebol em jogos internacionais. Castigo: enquanto eu não soubesse cantar o hino completo, ficaria fora das aulas de música. Estaria suspensa. E as faltas sendo computadas. Decorei e, duas ou três semanas depois, fiz um acordo com a freira: sentar-me na última carteira enquanto a aula continuava com as outras alunas e escrever o hino, sem cantar, porque o castigo fora porque eu não sabia a letra. Se eu tivesse de cantar, nunca teria concluído o curso, porque não sei cantar nem parabéns a você. Mas consegui escrever toda a letra certinha e na aula seguinte voltei para a sala com as colegas. Ufa!
Aí vai toda a letra do hino. Depois comentarei cada estrofe, dando a forma original seguida do comentário.
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante
E o sol da liberdade em raios fúlgidos
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!
Ó Pátria amada,
Idolatrada
Salve! Salve!
Brasil, um raio intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce
Se em teu formoso céu, risonho e límpido
A imagem do Cruzeiro resplandece.
Gigante pela própria natureza
És belo, és forte, impávido colosso
E o teu futuro espelha essa grandeza
Terra adorada
Entre outras mil
És tu Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo és mãe gentil
Pátria amada, Brasil!
Deitado eternamente em berço esplêndido
Ao som do mar e à luz do céu profundo
Fulguras ó Brasil, florão da América
Iluminado ao Sol do Novo Mundo.
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos “campos têm mais flores”
Nossos “bosques têm mais vida
Nossa vida em teu seio mais amores.”
Ó Pátria amada, idolatrada
Salve, salve!
Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado.
Mas se ergues da justiça a clava forte
Verás que um filho teu não foge à luta
Nem teme quem te adora a própria morte
Terra adorada
Entre outras mil
és tu Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo
És mãe gentil
Pátria amada Brasil!
Para entender o que diz a letra do nosso hino, deve-se primeiro passar a poesia para forma de prosa, pois por exigência de rima e ritmo, os poetas abusam da ordem inversa e de palavras incomuns, o que dificulta muito o entendimento da mensagem. Ao passar para prosa, já vou substituir as palavras difíceis por outras mais conhecidas. Vejamos, estrofe por estrofe:
Ouviram do Ipiranga as margens plácidas
De um povo heroico o brado retumbante
E o sol da liberdade em raios fúlgidos
Brilhou no céu da Pátria nesse instante.
As margens calmas do riacho Ipiranga ouviram o grito forte e vibrante de um povo heroico e nesse instante o sol da liberdade brilhou no céu do Brasil. As margens, espaço geográfico, não têm ouvidos, mas o poeta usa esse recurso para dizer que quem estava naquele local presenciou o acontecimento. A Pátria estava livre da dominação portuguesa! O autor faz referência ao grito – Independência ou Morte! – de D. Pedro I, ao retirar as cores de Portugal do seu chapéu, simbolizando a ruptura daquele jugo e proclamar a nossa independência em 7 de setembro de 1822, nas margens desse riacho.
Se o penhor dessa igualdade
Conseguimos conquistar com braço forte
Em teu seio, ó liberdade,
Desafia o nosso peito a própria morte!
O penhor dessa igualdade significa a garantia dessa igualdade. Se com a força do seu braço o brasileiro conseguiu conquistar a igualdade com Portugal, deixando de ser dominado por aquele reino, o autor conclama o povo a defender essa liberdade com a própria vida (em teu seio, ó liberdade, desafia o nosso peito a própria morte).
Ó Patria amada,
Idolatrada
Salve! Salve!
Esse refrão é uma louvação à Pátria.
Brasil, um raio intenso, um raio vívido
De amor e de esperança à terra desce
Se em teu formoso céu, risonho e límpido
A imagem do Cruzeiro resplandece.
Quando a imagem do Cruzeiro do Sul brilha no céu claro (num céu risonho e límpido), um sonho intenso de amor e de esperança desce à terra brasileira
em forma de raio de luz emanado dessa constelação.
Gigante pela própria natureza
És belo, és forte, impávido colosso
E o teu futuro espelha essa grandeza
Terra adorada!
Entre outras mil
És tu Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo é mãe gentil
Pátria amada, Brasil!
Gigante pela própria natureza, pois o Brasil já nasceu grande, não precisou guerrear contra seus vizinhos para aumentar seu território. Com a expressão impávido colosso o autor diz que, além de grande, o Brasil não tem medo de nada nem de ninguém. É corajoso. Destemido. E o seu futuro projeta essa grandeza. És mãe gentil dos filhos deste solo, Pátria amada, Brasil!
Deitado eternamente em berço esplêndido
Ao som do mar e à luz do céu profundo
Fulguras ó Brasil, florão da América
Iluminado ao Sol do Novo Mundo.
Deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo. O autor refere que nosso país é pacífico; berço esplêndido é berço de ouro, símbolo de riqueza. Um mar imenso e lindo, navegável, ao longo de toda a costa do país. Um mar pacífico, murmurante (ao som do mar) para embalar o gigante deitado, adormecido. Ao som do mar e à luz do céu profundo transmite ideia de beleza, serenidade, paz e tranquilidade. Paisagens bonitas. Nosso país é muito bonito.
Fulguras ó Brasil, florão da América: florão no sentido estrito é peça de ornamento em forma de arco florido usado em abóbadas, na arquitetura; na gráfica, vinheta em forma de flor para decorar início de capítulo; mas aqui o autor usa a palavra no sentido figurado: brilhas intensamente, ó Brasil, adornando a América. Iluminado ao céu do Novo Mundo: o Velho Mundo é a Europa; o Novo Mundo é a América. Para não repetir o nome do continente americano e por questão de rima e ritmo, o autor diz que o Brasil brilha iluminado ao sol do Novo Mundo.
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos “campos têm mais flores”
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida “em teu seio mais amores”
Ó Pátria amada, idolatrada
Salve, salve!
Teus risonhos, lindos campos têm mais flores do que a terra mais alegre, mais elegante, mais garbosa (garrida[2]), e em teu solo nossa vida é mais amorosa.
Brasil, de amor eterno seja símbolo
O lábaro que ostentas estrelado
E diga o verde-louro dessa flâmula
Paz no futuro e glória no passado.
Traduzindo: Brasil, que tua bandeira cheia de estrelas (lábaro estrelado) seja símbolo de amor eterno; e que o seu verde-amarelo (verde-louro dessa flâmula) signifique paz no futuro e glória no passado. Lábaro e flâmula significam bandeira. O poeta usou os dois sinônimos numa só estrofe. E o fez muito bem, com muita elegância e beleza.
Mas se ergues da justiça a clava forte
Verás que um filho teu não foge à luta
Nem teme quem te adora a própria morte
Terra adorada
Entre outras mil
és tu Brasil
Ó Pátria amada!
Dos filhos deste solo
És mãe gentil
Pátria amada Brasil!
Mas se ergues da justiça a clava forte: clava é arma primitiva que consiste num pedaço de pau com uma extremidade mais grossa para luta corpo a corpo; é o tacape, arma cerimonial usada pelos indígenas. Aqui o autor inicia a estrofe com a conjunção adversativa mas para introduzir uma ideia contrária à da estrofe anterior: apesar de ser um povo pacífico, se for necessário lutar, a Pátria poderá contar com os brasileiros para defendê-la: verás que um filho teu não foge à luta e quem a adora, não teme lutar até morrer para defender a terra adorada, a mais bonita do mundo: nem teme quem te adora a própria morte, terra adorada. E termina com o belo refrão, reafirmando os louvores à terra natal: entre outras mil, és tu Brasil, ó Pátria amada/dos filhos deste solo é mãe gentil/Pátria amada, Brasil!
[1] Curiosidades sobre nosso hino: 1. Na sua letra há um enxerto que seria plágio se não estivesse entre aspas. Estes dois versos: Nossos bosques têm mais vida/ nossa vida em teu seio mais amores foram retirados da Canção do Exílio, de Gonçalves Dias (1823-1864), que começa assim: Minha terra tem palmeiras/ onde canta o sabiá/ as aves que aqui gorjeiam/ não gorjeiam como lá.
2. Cantado pela primeira vez em 13 de maio de 1831, nosso hino não teve letra oficial e definitiva durante quase 80 anos: somente em 1910, por concurso público instituído pelo Congresso Nacional, com prêmio de cinco contos de réis, foi aceita a letra de Joaquim Osório Duque Estrada, escrita em 1909 e oficializada em 1922.
[2] Garrida aqui é adjetivo de dois gêneros: terra garrida, povo garrido. Como substantivo tem outros sentidos: a) sino de convento que anuncia o começo e o fim das orações; b) peça de ferro que sustenta o eixo do carro de bois; c) coleira com chocalho que se coloca no pescoço dos bois.
Lia Leal
› FONTE: Floripa News (www.floripanews.com.br)