Especialistas em Direito analisam votação do Senado, que deve ser contestada na Justiça
Em uma única tacada o presidente do Supremo Tribunal Federal, Ricardo Lewandowski, pode ter beneficiado dois inimigos políticos: a ex-presidenta Dilma Rousseff e o deputado afastado Eduardo Cunha, maior artífice de seu impeachment. A petista foi afastada definitivamente da presidência da República nesta quarta-feira. No entanto, diferentemente do que ocorreu com o ex-presidente Fernando Collor de Mello em 1992, a petista não perdeu seus direitos políticos. Lewandowski, que presidia a sessão que a condenou por crime de responsabilidade, permitiu que fosse realizada uma votação separada para analisar se Dilma deveria ser inabilitada para ocupar cargos públicos. E mesmo perdendo por 42 votos a 36 (eram necessários dois terços dos votos, ou seja, 54), ela manteve o direito não só de participar da administração pública como disputar eleições, segundo especialistas ouvidos pelo EL PAÍS.
Segundo eles, a decisão do ministro abre um perigoso precedente para que políticos – dentre eles Eduardo Cunha, que deve ter seu processo de cassação julgado na Câmara em breve – não tenham direitos políticos suspensos em caso de cassação. A tese ganhou força pelo número de votos de integrantes do PMDB que votaram a favor de impeachment e contra a perda de direitos da agora ex-presidenta. Dos 36 votos que favorecem Dilma, nove são de peemedebistas, como Edison Lobão, que foi ministro de Minas e Energia do governo que sai, além do presidente do Senado, Renan Calheiros. Ambos são investigados pela Operação Lava Jato. O assunto gerou reações indignadas de senadores do PSDB, do DEM e do Solidariedade. Eles chegaram a anunciar que iriam recorrer à Corte para que esse ponto seja revisto. Mas voltaram atrás por temer que um pedido de anulação da votação pudesse vir a tirar a validade de todo o processo de impeachment.
A expectativa é que agora a questão seja levada ao STF para que o colegiado decida se a conduta adotada por Lewandowski será mantida ou não. O próprio presidente Michel Temer falou sobre a questão, frisando que a inabilitação está prevista "no texto constitucional de forma clara".
O pedido de destaque (votação em separado) foi uma estratégia de aliados da então presidenta afastada. Apresentado pela senadora Kátia Abreu, fiel escudeira da petista, e defendido por Lindbergh Farias, ele foi aceito por Lewandowski, apesar de contrariar o que diz a Constituição e outras decisões anteriores do STF. O artigo 52 da Carta diz que o impeachment acarreta “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”. A inabilitação prevê a inelegibilidade. E no final de 2015, quando o Supremo e parlamentares começaram a discutir qual o rito que deveria ser seguido no processo contra Dilma, ficou acordado que deveria ser repetido o modelo adotado no caso de Collor.
“Seria preciso uma reforma da Carta via Proposta de Emenda à Constituição para que o julgamento de impeachment fosse feito em duas etapas”
O ministro justificou sua decisão desta quarta dizendo que "a matéria é controversa". No caso do ex-presidente, que perdeu seus direitos em 1992, juízes que não eram do STF participaram da decisão. Por isso, não era possível afirmar se "se pode ou não ser utilizado como referência". Ele se refere ao fato de que naquele ano houve um empate no Supremo com relação ao rito, e juízes do Superior Tribunal de Justiça foram convidados para auxiliar na decisão.
“Eu nunca ouvi falar nessa possibilidade, de impeachment sem perda de direitos políticos”, afirma Marcelo Figueiredo Santos, professor de direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Para ele, o modelo adotado no caso de Dilma “é uma criação do julgamento”. Ele ressalta ainda que a Constituição é clara, “e não fala sobre esse fatiamento [da votação] que foi feito”. Na avaliação de Santos, “não é uma decisão positiva, abre espaço para que parlamentares e outros chefes do Executivo usem essa via para manter seus direitos políticos em caso de cassação".
O professor argumenta ainda que, para que o fatiamento do artigo da Constituição fosse feito de forma adequada do ponto de vista legal, “seria preciso uma reforma da Carta via Proposta de Emenda à Constituição para que o julgamento de impeachment fosse feito em duas etapas”.
Ivar Hartmann, professor da Faculdade Getúlio Vargas-Rio e coordenador do projeto Supremo em Números, Lewandowski errou ao permitir a votação em duas parte. “É compreensível que a defesa, em uma última cartada, proponha uma medida esdrúxula como essa”, diz. “Mas o presidente do Supremo não poderia ter transformado isso em algo legítimo”. Para Hartmann, apesar da cassação e perda de direitos de parlamentares ser regida por uma Lei Complementar, e não pela Constituição, nada impede que esse precedente aberto por Lewandowski seja evocado em outros julgamentos.
Antes da aprovação do destaque proposto por Kátia Abreu, Collor protestou sem sucesso, ressaltando a diferença nos ritos adotados com ele e com Dilma. A ex-presidenta, por sua vez, discursou após a votação de seu afastamento definitivo. Em dado momento, a petista disse que não diria “adeus (...) tenho certeza que posso dizer até daqui a pouco”. Se depender da decisão e Lewandowski, ela pode voltar ainda este ano.
› FONTE: El País